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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16851: O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) – Parte Final (José Teixeira): os frutos (amargos) da aventura...


Guiné > Região de Quínara > Tite > Julho de 1965 > O Santos Oliveira, em pacato  passeio pela tabanca


Guiné > Região de Quínara > Tite > Agosto/setembro de 1965 > Uma cena de caça


Guiné > Região de Quínara > Tite > Julho de 1965 > Uma DO27 (Dornier) na pista de reabastecimento.

Fotos do álbum do nosso camarada, grã-tabanquerio da primeira hora, de Santos Oliveira, ex-2.º  sgrt mil armas pesadas inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66). Esteve em Tite ao tempo do BCAÇ 1860 (Tite, abril de 1965/abril de 1967)

Fotos (e legendas): © Santos Oliveira (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O Zé Teixeira, em 2008, em Iemberém,
com  população local. Foto de Luís Graça (2008)
O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) – Parte Final (José Teixeira): os frutos (amargos) da aventura...



1. Preâmbulo

Todos nós, os que passamos pela guerra (e em particular pelo TO da Guiné), temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vividas (, "com sangue, suor e lágrimas"...)  num  ambiente hostil e agressivo, próprio dos confrontos militares . É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou.

É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças, às vezes pormenores que nos escaparam ou a que não demos atenção. Foram situações (ataques, flagelações, emboscadas, explosões de minas e armadilhas, etc.) vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação, é capaz de "ver" e "narrar" os acontecimentos de outra maneira... O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afeta a informação registada na memória (e depois a narrativa, a reconstituição, o depouimento...).

Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite, de 22 para 23 de janeiro de 1963, data (polémica) do in´´iio "oficial" da guerra colonial (ou de "libertação", para os nacionalistas). Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes da "narrativa" daqueles que,  na altura, defendiam a bandeira verde e rubra. Pontos de vista diferentes, mas tespeitáveis, já que tal como a moeda, a "verdade" tem um verso e um reverso.  São estes conjuntos de ponto de vista, diferentes entre si, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

Estranhamente pouco ou nada se tem escrito, oficialmente,  sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.

Na parte da entrevista que se segue, o entrevistado assume que o ataque a Tite foi uma aventura, a qual serviu de alerta para as tropas portuguesas. Na realidade, podia ter sido uma grande catástrofe para os guineenses envolvidos pela sua ingenuidade de fazer avançar cerca de 150 africanos (!) – diz ele – com reduzido armamento e nenhuma formação nem prática de combate, contra uma instituição militar devidamente apetrechada e homens bem trenados no manuseamento de armas. Valeu-lhes o ato de surpresa e creio mesmo que a população local envolvida fugiu a sete pés, mal se iniciou o tiroteio.

Com este "ato de loucura", o PAIGC terá ganhado mais alguns aderentes e talvez notícias de primeira página nos jornais, por esse mundo fora, vacinado contra o colonialismo via URSS e EUA, as grandes potências em conflito latente, empenhadas em “abocanhar” a África e a afirmar a sua hegemonia geopolítica,,,. Claro que foi um ato que deu “gás” aos militantes do PAIGC, fazendo sentir que era possível lutar contra os "tugas" (sic), de "armas na mão", bastante para isso terem armas, pois que vontade não lhes  faltava.

Mas,  como acontecimento de guerra, o ataque a Tite não passou de um fracasso, para ambos os lados da barricada. Desgraçadamente, foi o início de uma escalada que só parou 11 anos depois... e que nos envolveu a todos.

A três anos de morrer, Arafam Mané faz também o balanço de uma vida:  "filho de camponês", com passagem pela escola do maoismo, e tendo conhecido as misérias e as grandezas da luta de libertação nacional, da independência, do exercício da governação e das lutas fratricidas no seio do PAIGC, Arafam Mané termina a entrevista em tom "politicamente correto", mas nem por isso menos "coerente" e "humano" e até com uma ponta de "amargura":

Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida de um camponês. O filho do camponês é sempre condenado na sociedade dos intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite.

Em todo o caso, convirá dizer que esta versão dos acontecimentos de 23 de janeiro de 1963 não é consensual entre os próprios protagonistas (***)... Como sói dizer-se, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto... Por exemplo, não fica esclarecido quem é que "comandou" a operação, se fosse o Malam Sanhá ou so seu adjunto, o Arafam Mané...Como os dois já morreram, nunca mais irão esclarecer esta minha pequena dúvida...



II. Sinopse da entrevista – Parte Final

Arafam Mané com uma "costureirinha", c. 1963. Foto
do Arquivo Amílcar Cabral / Casa Counm.
Com a devida vénia......


No texto anterior o entrevistado dizia, continuando a responder à pergunta, " Mas como é que conseguiram penetrar facilmente no interior do quartel?"

“A nossa missão podia ter maior sucesso se um dos nossos companheiros não tivesse falhado no cumprimento da ordem. Não obstante tudo, a operação planeada para esse dia não podia ser adiada custe o que custasse. Considero que o acto foi uma aventura que serviu de alerta para os tugas; porque queríamos que soubessem que voltamos com força para a zona. Foi uma guerra psicológica porque, na realidade, nós não tínhamos uma força palpável. Mas essa acção desorientou as tropas coloniais que a partir daquele momento receavam sair do quartel para fazer patrulhas.”

E continuava:

"No entretanto, após esta corajosa operação, mais de 300 jovens voluntários aderiram ao movimento de guerrilheiros para, do nosso lado, lutar contra os colonialistas portugueses. Não havia armas nem tão pouco baionetas mas esta realidade não desanimou os jovens cujo número de aderentes crescia constantemente na minha barraca [acampamento temporário]."

Publicamos a seguir a resposta de Arafam Mané às duas questões finais.


III. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte IV ( e última)

Esta entrevista foi concedida em 2001 ao jornal “O Defensor”, órgão, de periodicidade mensal, das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional, entrevista essa reproduzida no sítio das FARP, em novembro de 2015.

Excertos transcritos com a devida vénia.(A entrevista completa pode ser lida aqui. no sítio das FARP, Guiné-Bissau.)

(Continuação)

O Defensor – Coronel, o que pensa que poderia acontecer durante a operação 
se o vosso comando inexperiente
 tivesse armas de fogo suficientes?



Malan Sanhá, c. 1963.
Foto do Arquivo  Amílcar Canral
/ Casa Comum

Com a devida vénia...
Coronel ADM :

Penso que a falta de armas ou a sua insuficiência na altura da operação de Tite foi uma coisa positiva, porque se houvesse muitas armas, isso teria talvez constituído um golpe fatal para o nosso próprio comando que, certamente, devido a falta de experiência sobre o uso de armas poderia provocar vítimas nas nossas fileiras mesmo, como referiu o célebre cantor guineense José Carlos Schwarz,“caçador desconhecido falhou e virou a sua arma contra a aldeia”.

Se não fosse a falta de experiência, teríamos ocupado Tite naquele dia, porque as tropas coloniais,  surpreendidas pela operação,  tinham já fugido. 

Do nosso lado, a única baixa do assalto foi o meu guarda costa Wagna Bomba, natural de Gambala, que sucumbiu atingido por balas do inimigo. Do lado do inimigo, não posso avançar um número preciso de vítimas mas deve ter sido considerável, porque o camarada Malam Sanhá conseguiu lançar uma granada dentro da caserna onde dormiam soldados. Foi um sucesso, camarada jornalista.

Portanto, depois da operação em Tite, os ataques da guerrilha se multiplicaram, alastrando-se para os diferentes pontos do sul.

A notícia sobre o início da luta armada contra os colonialistas portugueses, como já disse anteriormente,  foi tornada pública por Amílcar Cabral em Londres (Inglaterra), numa Conferencia de Imprensa. Em África, a notícia foi imediatamente publicitada pelas Rádios de Conacri, Rádio Nacional do Senegal e mais tarde pela “Rádio Libertação” do PAIGC.

A divulgação dessa notícia nos órgãos de comunicação social levantou o moral no seio dos camaradas e a vontade de lutar fortemente para libertar o nosso povo. Enquanto para os "tugas", a divulgação da notícia constituiu uma dor de cabeça.


O Defensor  - Mas no fundo 
qual foi a reacção de Amílcar Cabral 
logo que foi informado do ataque 
contra o quartel de Tite?


Coronel ADM :

 Foi positiva. Fui logo promovido ao posto de Comandante Regional. E, antes da minha ida para a República Popular da China, que ocorreu em Abril de 1963, consegui mobilizar um número considerável de camaradas para a luta. Tive inclusive contactos com Bissau na pessoa de Rafael Barbosa que na altura era grande membro do Comité Central do PAIGC.


FACTOS HISTÓRICOS INESQUECÍVEIS 

São recordações de encorajamento, isso porque depois da operação as nossas populações chegaram a conclusão de que, afinal, nós naquela altura não podíamos fazer nada porque não tínhamos armas. Reconheceram, por outro lado, que nós podíamos ser bons soldados se tivéssemos armamento. Depois dessa acção, passamos a receber géneros da população e recebemos também medicamentos.

Houve igualmente o congresso de Cassacá que deu o acento tónico que a população esperava do grande partido. O congresso permitiu acabar com as barbaridades praticadas por alguns camaradas, reorganizar a nossa luta armada, entre outros. O povo voltou a ganhar a confiança no partido, nos seus dirigentes e no destino da Luta de Libertação Nacional.

Mas a maior satisfação que tenho é, precisamente, o facto de ver hoje os camaradas que ontem eram camponeses analfabetos que tinham como vestuários “lopé” (tanga), panos rodeados no corpo com os pés descalços, tornarem-se agora grandes oficiais das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), outros são Engenheiros, Aviadores (Pilotos), Médicos, Deputados, Condutores, pilotos de barcos...

Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida de um camponês. O filho do camponês é sempre condenado na sociedade dos intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite.


IV. Comentário final

Vejo nesta entrevista um documento histórico de relevante interesse, pois acaba por desmistifica um acontecimento propalado aos quatro ventos como um verdadeiro ato de guerra, heróico e grandiloquente... Afinal não passou de uma "aventura", uma ação, tosca,  que escapou à própria direção política do PAIGC, quase sem consequências imediatas, a não ser a de alertar as tropas portuguesas...

Em todo  caso, e usando a terminologia dos historiadores da guerra colonial Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, mal ou bem o "ataque a Tite" marca o fim da "fase pré-insurreccional e de doutrinação políticia (in; Afonso, A, e Matos Gomes, C. - Guerra colonial; Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d, p. 421),

O PAIGC estava em fase de mentalização e mobilização das populações, e de organização das suas estruturas enquanto  a tropa portuguesa ainda “dormia na forma”. 

Por outro lado, está bem patente o medo que os militares portugueses impunham sobre as populações através de atos violentos na tentativa de travar o avanço do movimento independentista.

Hesitei em por o texto no nosso blogue, com receio de que iria abrir "velhas feridas mal curadas". Por outro lado o seu valor histórico impunha que fosse dado a público, mas para meu sossego passou incólume, sem o mais pequeno contraditório, o que me preocupa, confesso.


[Introdução, seleção, notas, incluindo parênteses retos, revisão e fixação de texto: Zé Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf]
____________

Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série:

3 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16794: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte I (José Teixeira)

8 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16812: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte II (José Teixeira)

11 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16823: O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte III (José Teixeira)

(**) Vd. portal noticioso > Guiné-Bissau > 24/1/2013 >23 de janeiro, dia de início da luta armada de libertação nacional, celebrado no país

(...) Bissau (Rádio Bombolom-FM, 23 de Janeiro de 2013) – A Guiné Bissau marcou ontem, quarta-feira, cinquenta anos do início da luta armada de libertação nacional a 23 de janeiro de 1963 no quartel de Tite, região de Quínara, no sul da capital, Bissau.

Em homenagem a esse acontecimento histórico do país, o Estado-Maior General das Forças Armadas, através da Divisão para os Assuntos Cívicos e Sociais e Relações Públicas, promoveu uma palestra subordinada “Início da Luta Armada pela Independência da Guiné e Cabo Verde”.

Um dos participantes nesse primeiro ataque com armas de fogo contra um reduto militar português na então Província Ultramarina da Guiné, Daúda Bangura (Comissário Político), lembra ainda dos nomes de heróis que haviam constitudo o grupo de assalto, entre eles, Arafam Mané (na altura Adjunto de Comandante), Malam Sanhã (na altura Comandante Geral da Operação) e Tchambu Mané, que era Comandante de Grupo.

Apesar de o assalto ter sido de surpresa para as tropas portuguesas, Daúda Bangura lembra que na operação, o grupo sofreu duas baixas, nas pessoas dos guerrilheiros NFamará Dabó e Malam Dabó. (...)

sábado, 3 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16794: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte I (José Teixeira)




Sítio das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, onde vem inserido o poste "O fim da dominação colonial", com uma entrevista, concedida em 2001, pelo cor Arafam Mané (1945-2004), sobre o histórico ataque a Tite em 23 de janeiro de 1963.



O inicio da Guerra Colonial no CTIG, contada pelo outro lado:  entrevista,  de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam Mané (1945-2004) -Parte I  (José Teixeira)



1. Enquadramento 

por José Teixeira



[Foto à esquerda: José Teixeira, em 2013, com o régulo de Medjo: 

(i) é nosso grã-tabanqueiro da primeira hora; 

(ii) tem mais de 300 referências no nosso blogue; 

(iii) foi 1.º cabo aux enf,  CCAÇ 2381, "Os Maiorais", Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; 

(iv) está reformado como gerente bancário;  (v) vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; 

 (vi) é dirigente no movimento nacional escuteiro, onde é conhecido por "esquilo sorridente"; 

(vii) é um dos fundadores e 'régulos' da Tabanca de Matosinhos e continua a ser um dos nossos grã-tabanqueiros mais solidários e inquietos;

 (viii) foi talvez dos poucos de nós que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal, pela sua generosidade, coragem, inteligência emocional, sensibilidade sociocultural,, empatia  e demais qualidades humanas), conseguiu saltar a 'barreira da espécie': ele, "tuga" e cristão, foi aceite e amado pela população fula e muçulmana, e ainda hoje tem verdadeiros amigos, fulas, lá Guiné-Bissau profunda, onde  é amado, mimado, adorado quando lá volta (e já lá voltou não sei quantas vezes) ]


Todos nós, os que passamos pela guerra, temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vivenciadas no ambiente agressivo da guerra. É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou. É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças nas versões dos acontecimentos, ou pormenores que desconhecíamos. Foram vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém, com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação. O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afetam a informação registada na memória. A memópria humana é seletiva.

Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite. Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes (e tão "respeitáveis", omo os nossos relatos). São estes conjuntos de pontos de vista, diferentes entre si, e muitas vezes contraditórios, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

José Teixeira, Tabanca
de São Martinho do Porto,
11/8/2011. Foto de LG.
É comum afirmar-se que a guerra colonial na ex-província da Guiné teve o seu inicio com um ataque a Tite na célebre noite de 22 para 23 de janeiro de 1963, Aliás, o próprio Amílcar Cabral afirmou-o uns dias depois.

Na realidade, este ataque, pela sua dimensão e resultados, com mortos e feridos de ambas as partes em contenda, assinala simbolicamente a abertura das hostilidades.
E, no entanto, foi um acontecimento fortuito, desorganizado, sem comando definido e sobretudo à revelia dos órgãos do PAICG. 
Assim o afirmou, em 2001, o coordenador do ataque,  o então coronel Arafam Mané. 

Segundo ele, a guerrilha, à data, já era um facto no Norte, no Centro Sul e Sul desde 1961. Tite já terá sido atacada em 1962. As regiões do Tombali e Quínara estavam a fervilhar numa luta surda entre as forças portuguesas e o PAIGC, com muitas mortes (assassínios) na população, da responsabilidade de ambos os intervenientes. Esses primeiros tempos foram de terror e contraterror, subversão e contraversão... Uma época muito mal conhecida (e pior estudada)...

Revivo com saudade o meu amigo Samba, de Mampatá Foreá, infelizmente já falecido há muitos anos. Sargento da milícia, imã da comunidade muçulmana local (Fula). Homem culto, excelente cozinheiro,  que deixou Bissau para regressar à sua terra, o Regulado Foreá, e defender o seu povo. Muitos serões passámos em amena conversa, onde a religião e o drama da Guiné eram assunto.

Recordo, apesar da poeira do tempo, uma conversa sobre a forma como o inimigo procurava conquistar aderentes à força, no início da luta. Eles, dizia-me, o PAIGCV, entravam, armados, pelas tabancas dentro, e tentavam convencer o chefe da tabanca a entregar os jovens para as forças da guerrilha. Se não o fizesse,  era morto ali mesmo, e os homens válidos eram convidados a segui-los ou em caso de resistência eram forçados, com muitas mortes pelo meio.

Não foi por acaso que o Amílcar Cabral convocou o Congresso em Cassacá, em 1964. Um dos objetivos deste Congresso, foi acabar com as barbaridades,  as arbitrariedades eos abusos de poder, praticadas por alguns chefes de guerrilha, sem qualquer preparação política, de modo a que o povo voltasse a ganhar a confiança no Partido, nos seus dirigentes e no destino da luta de libertação nacional.

Muitos anos mais tarde, em 2008 no Simpósio Internacional de Guileje, tive oportunidade de conhecer e conversar com um ex-combatente das FARP da Guiné-Bissau que me tinha atacado várias vezes em Mampatá e na estrada de Gandembel, em 1968. É dele esta frase, que recordo com emoção:

“Guerra é guerra, meu 'ermon', quando passa não deixa saudades, mas, muitas amizades, neste mundo perdido. Os antigos inimigos se procuram, para saldar as contas com um abraço sentido.” Dizia-me ele: "Desculpa. Eu fui apanhado na minha tabanca, tinha quinze anos."

Mas não pensemos que as autoridades portuguesas ofereciam mel e pão aos guineenses para os conquistar para a sua causa. Os factos narrados nesse Simpósip, por vitimas guineenses, que fugiram para o mato, creio que por medo (alguns) e posteriormente integraram a guerrilha, são de fazer arrepiar o mais “durão”. 

Era o tempo do “chapa ou fogo” na versão mais agressiva do temido e odiado capitão José Curto por parte dos guineenses afetos ao PAIGC (*).. E, nas minhas idas à Guiné-Bissau, tenho conversado com ex-combatentes do PAIGC, onde relembram os tempos de terror imposto pelos "tugas" nas tabancas do interior, que os levou a fugirem para o mato e entrarem na luta.

Mas voltemos ao ataque a Tite para rever os acontecimentos através de relatos insuspeitos de terceiros e presenciais.

".... Em Janeiro de 1963, foi a sede do Batalhão atacada com armas automáticas e de repetição e granadas de mão. Deste ataque resultou 1 morto e 1 ferido das NT e 8 mortos confirmados e vários feridos graves IN. Depois deste ataque foram intensificados os patrulhamentos de que resultou a morte do Papa Leite, elemento IN que actuava na área e que facultou a recolha de valiosíssimos elementos da Ordem de Batalha IN..."

In, Carta de 7-07-1981 do ten cor  Manuel José Morgado, enviada ao director do Arquivo Histórico Militar, em resposta ao assunto " História das Unidades ".

Resumo da Actividade do BCaç. nº 237/BCaç. nº 599 - Maio de 1963 a Maio de 1965 [Caixa nº 123 - 2ª Div/4ª Sec., do AHM


O historiador José de Matos fala em quinze a vinte elementos do PAIGC, que mantem o quartel sob fogo intenso, durante cerca de meia hora, provocando um morto e dois feridos às nossas tropas e deixando três mortos no terreno.(vd. poste  P15795).

O nosso investigador de serviço ao blogue, o incansável José Martins, convidado pelo Luís Graça a investigar o ataque a Tite, concluiu:

“Arafan Mané (nome de guerra, 'Ndajamba'), militante do PAIGC, destacado Combatente da Liberdade da Pátria, é considerado o 'responsável' pelo inicio das hostilidades na Guiné, ao ter disparado a primeira rajada de metralhadora e comandado a ofensiva. Teria menos de 20 anos. Veio a falecer em 2004, em Espanha, de doença". (P10990)

Estranhamente pouco ou nada se escreveu oficialmente sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.

Há o testemunho do Gabriel Moura, (vidé P 3294; P 3298 e P 3308 de 11/11/2008; 12/10/2008 e 13/10/2008 respetivamente). 

Foi este soldado português de Gondomar que estava de sentinela ao quartel de Tite, naquela fatídica noite, que entrou no Blogue pela mão do Carlos Silva, (seu conterrâneo e amigo) já depois do seu falecimento para contar a história que vivenciou. Foi o primeiro militar português, quando se encontrava de guarda ao aquartelamento, a responder ao fogo da força que atacou as instalações de Tite. 

Na reação ao fogo de que foi alvo, consumiu todas as munições de que dispunha, provavelmente três carregadores, assim como utilizou as duas granadas que lhe estavam distribuídas para o serviço. Faleceu em 2004, dois anos após ter editado as suas impressões sobre o acontecimento, e por coincidência no mesmo ano da morte de Arafan Mané.

Temos agora a oportunidade de tomar conhecimento do testemunho do Arafam Mané, ou seja, a versão de quem comandava o outro lado da barricada, numa entrevista publicada em 2001 no jornal O Defensor – Orgão de Informação Geral do Estado Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Reproduzida em 2015 no sítio das FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo, por iniciativa do major  Ussumane Conaté, diretor da publicação.



2. Arafam 'N' djamba' Mané (1945-2004)

(segundo nota biográfica redigida pelo major Ussumane Conaté, diretor de O Defensor; adaptação de JT])

[Foto à esquerda, Arafam Mané, cortesia de O Defensor]


O comandante Arafam 'N’djamba'  Mané nasceu no dia 29 de setembro de 1945, em Bissau, sendo filho de Lassana Mané e de Nhalin Cassama. Faleceu, de doença de evolução prolongada,  no dia 4 de setembro 2004,  num hospital de Madrid,  onde estava internado. [A data de nascimento pode não ser precisa, os guineenses nessa época não tinham registo civil].

Arafam Mané entrou cedo para o PAIGC, tendo chegado a Conacri, capital da República de Guiné em 1961, onde se foi juntar a Amilcar Cabral e outros militantes do PAIGC que tinham deixado Bissau para, a partir dali, organziar e dirigir a luta de guerrilha.

Após a proclamação unilateral da independência do país em 24 de setembro de 1973, o coronel Arafam 'N´djamba'  Mané ocupou vários cargos  entre as quais os  de :

  • Chefe de Casa Civil da Presidência da República
  • director geral da farmácia Farmedie
  • governador (sucessivamente) das regiões de Gabú e Bafata
  • ministro da Defesa Nacional,
  • ministro dos Combatentes da Liberdade da Pátria.

Foi também deputado  durante vários mandatos legislativos, membro do Comité Central, membro do Bureau Politico do PAIGC e também membro do Conselho de Estado durante o mandato presidencial de Koumba Yala. (Notas de Ussumane Conaté,  coronel, diretor de O Defensor)

[Mais elementos sobre Arafam ou Arafan Mané: vd.  poste P2190 de Virgilio Briote]

Esta entrevista, de que se reproduz uam primeira parte, hoje neste poste,  foi concedida em 2001 ao jornal O Defensor  "no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional para a independência total da Guiné-Bissau do jugo colonial".

É um documento de interesse para todos nós, pelo que tomamos a liberdade de o reproduzir e divulgar, no nosso blogue, com a devida vénia.  São raros os testemunhos de históricos dirigentes e comandantes do PAIGC, como o Arafam Mané.  Muitos deles morreram, levando consigo irremediavelmente para a tumba as suas memórias.  Nunca escreveram ou deram uma entrevista em vida.


3. Sinopse da entrevista (parte I) 


O Arafam Mané assumiu, com 17 anos (!), o comando da operação. Começa por confessar que o grupo,  vindo de Conacri,  não tinha experiência militar e estava muito mal armado - tinham apenas, três armas e uma pistola.  

Ao grupo juntaram-se civis,  de várias tabancas locais, num total de cerca de 150 pessoas, munidos de catanas, paus, pedras e algumas armas de fogo, suponho que mausers (?) e canhangulos ("longas").

A iniciativa partiu do grupo sem que tenha sido dada qualquer ordem superior. Ele mesmo afirma ao entrevistador: 

“Garanto-lhe que ninguém nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite”. 

E explica o "contexto": 

 "A operação foi realizada com raiva porque, em 1962, fomos corridos pelos 'tugas'. Este episódio aconteceu, depois de termos efetuado uma sabotagem, cortando as linhas telefónicas e os cabos elétricos daquela zona sul do país. Foi a partir das ações de sabotagem, que a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa presença na área."

Muito interessante a ideia (romântica?) de se fazer acompanhar de um “djidiu” de kora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Só que o “djidiu” deu ás de “vila diogo” e o combate ficou sem música, que não fosse a das espingardas e os gritos de dor.

Afirma que só tiveram um morto, creio que o seu guarda-costas, Wagna Na Bomba, o que contradiz a informação recolhida no nosso blogue, que fala em 8 mortes. Dado que grande parte dos atacantes eram da população local, talvez se esteja a referir apenas aos elementos do grupo vindo de Conacri e os outros mortos tenham sido dos elementos civis, locais,

Refere que o  Quemo Mané [um homem temperamental  e violento, associado a cenas de terroer, pós-independência, segundo o testemunho do nosso Cherno Baldé] foi encarregado de tentar eliminar o major Fabião.

Suponho que ele se queria referir ao major Pina, comandante da unidade sediada em Tite. [Nessa altura, era o BCAÇ 237, chegado à Guiné em 18/7/1961; esteve em Tite até ao fim da comissão, em 19/10/1963; teve dois cmdts: major inf [José] António Tavares de Pina; e depois o nosso conhecido ten cor Hélio Augusto Esteves Felgas, que será mais tarde o cmdt do Comando de Agrupamentio nº 2957, Bafatá, 1968/70.]

Aconselho a leitura do testemunho do Gabriel Moura / Carlos Silva para se entender o conteúdo da entrevista que se segue e apurar as contradições. (Sinopse de JT).



Primeira página de O Defensor, órgão das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo. Edição nº 22, dezembro de 2015, 16 pp.,   disponível aqui em formato pdf. O jornal, fundado em 1994, e de periodicidade mensal, tem como  diretor o major Ussumane Conaté.


4. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte I

Com a devida vénia ao jornal O Defensor, ao seu diretor, major Ussuame Canoté, e ao sítio das FARP. Revisão e fixação de texto: José Teixeira.



O Defensor – O coronel fez parte do comando que em janeiro de 1963 
orquestrou o ataque  contra o aquartelamento fortificado de Tite, 
em Quínara, no sul do país. 

O que é levou o vosso comando, mal-armado e inexperiente, 
a atacar esse quartel colonial?



Coronel Arafam Mané:

O ataque contra o aquartelamento de Tite foi realizado com poucas experiências militares, pois o efetivo que participou nele, era constituído por um grupo de camaradas do partido vindo de Conakry, [a que se juntaram elementos das] populações locais , munidas de algumas armas de fogo, catanas, paus e pedras. 

O ataque que surpreendeu as tropas do exército colonial, [que era]  muito temido pela sua barbaridade contra os autóctones, foi de facto executado sem um comando designado. Foi um ato de coragem e patriotismo que, desde a época dos nossos antepassados, sempre caracterizou a resistência dos guineenses contra qualquer tipo de dominação.

Em termos de armamentos, tínhamos apenas quatro (4) armas, uma pistola (1). Entreguei aos camaradas uma pistola e a arma que eu tinha, e fiquei com uma pistola automática com a qual disparei o primeiro tiro [para o]  ar para assinalar 
[a]os companheiros o início do ataque quando estávamos no interior do quartel fortificado de Tite. 

Com esse disparo, os camaradas entraram em ação,  utilizando todos os meios de combate que possuíam. O estrondo das armas,  misturado com as vozes de comando dos guerrilheiros que procuravam orientar melhor os companheiros para evitar perdas humanas, acordou as tropas coloniais e despertou a atenção dos sentinelas.

A operação foi realizada com raiva porque,  em 1962, fomos corridos pelos "tugas". Este episódio aconteceu, depois de termos efetuado uma sabotagem,  cortando as linhas telefónicas e os cabos elétricos daquela zona sul do país. Foi a partir das ações de sabotagem, que a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa presença na área.

[Em] 1963 repetimos a mesma operação de corte de linhas telefónicas e cabos elétricos. Estas práticas que eram prejudiciais para a comunicação e o funcionamento das instituições públicas e militares, irritaram os colonialistas que começaram a pressionar as populações com ameaças e torturas para obterem informações sobre os que eles chamavam “terroristas”. No âmbito da repressão foram alargadas as redes da PIDE-DGS (Polícia colonial).

O Defensor  – Na altura, a guerrilha já tinha criado 'barracas' 
a partir das quais coordenava as ações militares 
contra os interesses coloniais?

Coronel ADM:

Na altura ainda não tinha constituído 'barracas' [acampamentos temporários]. Às vezes alguns camaradas nossos saiam do Sul, iam até Bissau cumprir missões do partido e regressar sem serem descobertos pelas autoridades portuguesas, a PIDE e os seus agentes. 

Para além de Bissau, cidade capital, mais controlada, os guerrilheiros também se infiltravam nas tabancas,  partilhando refeições e outros alimentos com as populações sem que ninguém desse  conta ou soubesse quem eram.

Mas não pense que tínhamos homens prontos para efetuar trabalhos de reconhecimento e outras missões arriscadas. Não. Às vezes era eu, o meu guarda-costas e meu adjunto, camarada Fernando Badinca, entre outros.

Foi assim que,  em 1962, nos instalámos na tabanca de Cantongo a 3 km de Nova Sintra, a partir de onde nos movimentávamos até as aldeias de Flac-An, Flac Mindé, Flac-Mim, Flora, Bunaussa... 

Às vezes atravessávamos o rio, íamos a Bolama e daí íamos para a tabanca de Uato para entabular contactos com a população, com o régulo Oliveira Sanca, contactar Jaime Sampa, Lai Canté e outros camaradas. [Eram]  estes que nos enviavam jornais e outros objetos de que precisávamos.

Tínhamos também contactos com o camarada Rafael Barbosa, Aristides Pereira,  inclusive o senhor Eustáquio que, ultimamente, depois da independência teve problemas [de saúde mental]. Foi assim que se iniciou a luta armada de libertação nacional.

O Defensor  – Qual é a estratégia adotada pela guerrilha 
quando se sentiu ameaçada pela movimentação 
da força militar colonial na zona?


Coronel ADM:

Alguns tempos depois fomos obrigados a abandonar esses locais, devido as ações do inimigo que, em termos de material bélico, nos superava na altura. Este é o primeiro fator. 

O segundo fator é que abandonamos a zona para salvaguardar as nossas populações, alvos de torturas quando os "tugas"  descobriam que a tabanca manteve contactos connosco ou albergava os nossos camaradas.

Entretanto, quando nos retiramos de lá, fomo[-nos]  instalar na tabanca de Calunca a partir da qual conseguimos ocupar todas as tabancas da fronteira com a Guiné Conacri. 

Logo depois da ocupação daquelas tabancas,  mandamos o camarada Malam Sanhá, para Conacri, para contactar os membros da Direção Superior do Partido e dar-lhes informações sobre a nova situação.

A chegada de Malam Sanhá a Conacri coincidiu com a chegada das primeiras armas provenientes do reino de Marrocos. Eram cerca de quatro a cinco armas de marca “Patchanga” [metralhadora ligeira DEGTYAREV RDP Cal. 7,62 mm] que,  quando chegaram,  foram distribuídas entre nós,  antes de voltarmos para o mato.



Guiné > 1964 > PAIGC > Cassacá > I Congresso.do PAIGC, Quinta, 13 de fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de fevereiro de 1964, Da esquerda para a direita, Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek durante o I Congresso.do PAIGC, em Cassacá,

Foto (e legenda): Portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, Consult em 28 de junho de 2016. Disponível em http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05224.000.056 (Reprodução parcial, com a devdia vénia)


O Defensor –A chegada das primeiras armas do reino de Marrocos 
às mãos da guerrilha, foi acompanhada de uma ordem superior 
para atacar o quartel colonial de Tite?


Coronel ADM:

Garanto-lhe que ninguém nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite. Amílcar Cabral não nos tinha dito nem ordenado atacar o fortificado quartel com três ou quatro armas. Amílcar Cabral recomendou apenas que voltássemos para o mato,  visto que estávamos armados. Mas, no entretanto, para assustar os colonialistas e também para libertar os nossos companheiros, encarcerados na prisão, decidimos assaltar o quartel de Tite.

Eu me encontrava baseado em Nova Sintra enquanto Malam Sanhá estava na área de Cantona (Fulacunda), onde já se sentia sufocado,  devido a falta de matas densas para se esconder melhor. Esta realidade que representava um potencial risco para ele e seus homens, obrigou[-o] a abandonar o local e juntar-se a nós,  em Nova Sintra.

Recordo que Malam Sanhá chegou a Nova Sintra, precisamente na altura em que nós já estávamos em plena preparação da operação de assalto ao quartel de Tite. Aproveitamos logo a oportunidade para apresentar-lhe a nossa ideia de assaltar as instalações militares de Tite e ele concordou.

Portanto, uma vez a ideia acertada, procedeu-se a distribuição de tarefas claras e concretas a cumprir por cada um de nós. 

Assim, o camarada Malam Sanhá,  que já tinha sido militar no exército colonial português, foi designado para destruir a caserna dos soldados, enquanto o camarada Quemo Mané tinha como missão eliminar fisicamente o major Fabião, comandante da força colonial em Tite. Quemo Mané, que era grande caçador, tinha essa missão porque conhecia muito bem a residência do major, a quem ia sempre vender carne de caça.

O camarada Dauda Bangura tinha como missão rebentar as portas da prisão, [fazendo
]  explodir uma mina. Ele tinha feito um treino militar na República Popular da China por isso tinha alguns conhecimentos sobre as minas.

Eu fui encostar-me [a uma] das esquinas da caserna que devia ser atacada pelo camarada Malan Sanhá. Foi a partir dali que disparei a pistola, o primeiro tiro que deu início ao histórico ataque da guerrilha contra o quartel fortificado de Tite. 

Neste ataque, levámos connosco um “djidiu” de kora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Mas este camarada,  com a intensidade do fogo e a tentativa de resposta do inimigo, não desempenhou o seu papel e acabou por desaparecer,  abandonando os instrumentos musicais.

Eu, a partir da posição que ocupava,  gritava com força ao camarada Dauda Bangura,  dizendo-lhe “Dauda! Mina, mina, coloque a mina no sítio indicado e faça-a explodir”. 

Eu gritava tanto, porque não tínhamos experiência de guerra. Talvez foi por essa razão que não sentíamos o perigo que pairava sobre nós assim como as consequências que poderiam advir.

(continua)

Introdução, seleção, notas, revisão e fixação de texto:  Zé Teixeira /LG

______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6866: O Nosso Livro de Visitas (97): José Pinto Ferreira, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, CCS/BCAÇ 237 (Tite, Julho de 1961 / Outubro de 1963): Evocando o lendário Cap Curto (CCAÇ 153, Fulacunda, 1961/63)


sábado, 6 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2159: PAIGC - Quem foi quem (3): Nino Vieira (n. 1939)

Dos editores do blogue> Série em construção, PAIGC - Quem foi quem ... (1). Contributos de todos os amigos e camaradas serão bem vindos, tendo em vista actualizar, completar, aprofundar ou esclarecer estas notas biográficas. (Os editores LG/CV/VB)

Nino Vieira (n. 1939)

Um guerrilheiro e uma lenda viva.


João Bernardo Vieira, Nino Vieira, Nino ou Kabi Nafantchammma como também era chamado, foi uma personalidade que nos acompanhou ao longo dos anos que durou a guerra.

Uns só ouviram falar dele, outros, principalmente os que estiveram no sul do território, sentiram na pele as acções em que directa ou indirectamente esteve envolvido.

Nino nasceu em Bissau, em 27 de Abril de 1939.
Electricista de formação, filiou-se no PAIGC em 1960 e no mesmo ano partiu para a China, integrado no primeiro grupo de militantes do PAIGC que frequentou a Academia Militar de Pequim.

De volta à Guiné, foi encarregado de organizar a estrutura militar da guerrilha no Sul do território.

E teve logo que provar na prática o que tinha aprendido. Nos inícios de 1964, durante a Operação Tridente, forças do BCAV 490, fuzileiros, paraquedistas e comandos, comandadas pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro reocuparam (enquanto lá permaneceram...)a ilha de Como (ou Komo), numa acção que durou cerca de 70 dias e que custou às NT 9 mortos, 47 feridos e um T6 abatido.

Com 25 anos apenas, Nino já era o Comandante Militar da zona sul, que abrangia a região de Catió até à fronteira com a Guiné-Conacri. Aliás, foi quase sempre no Sul que actuou durante a luta, transformando esta zona, que abrangia o Cantanhez e o Quitafine, num dos mais duros, senão o mais duro, de todos os teatros de operações em que as forças portuguesas estiveram empenhadas e do qual ainda restam nomes míticos de Guileje, que ele veio a ocupar em 1973, Gadamael, Gandembel, Cacine, Catió, Cufar, Cadique, Bedanda e tantos outros.

Além da indesmentível coragem, Nino teve também pelo seu lado a sorte que faz os heróis sobreviverem, e foi essa sorte que lhe permitiu escapar por várias vezes a emboscadas montadas pelas forças portuguesas, sendo o caso mais conhecido o da Operação Jove, em que uma força de páras capturou o capitão cubano Pedro Peralta.

Embora se tenha dedicado principalmente à actividade operacional, como comandante de unidades de guerrilheiros, Nino Vieira ocupou os mais altos cargos na estrutura do PAIGC, sendo membro eleito do bureau político do seu Comité Central desde 1964, vice-presidente do Conselho de Guerra presidido por Amílcar Cabral em 1965, acumulando com o comando da Frente Sul, e ainda comandante militar de todo o território a partir de 1970.

Foi eleito deputado em 1973 e, posteriormente, Presidente da Assembleia Nacional Popular, que proclamou no Boé a República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973.
Luís Cabral nomeou-o 1º Ministro do Governo da Guiné-Bissau em 28 de Setembro de 1978.
Em 1980, com as condições económicas deterioradas e o crescente descontentamento da população, Nino Vieira liderou um golpe militar que levou à destituição do Presidente da República, Luís Cabral.

As consequências do golpe tiveram profundas repercussões na vida do PAIGC. O PAIGC de Cabo Verde resolveu separar-se e a união dos povos guineense e cabo-verdiano, tão acarinhada por Amílcar Cabral, foi interrompida.
Na sequência do pronunciamento militar, suspensa a Constituição da República da Guiné-Bissau, tomou posse o Conselho Militar da Revolução chefiado por Nino Vieira.

Em 1984 foi aprovada uma nova Constituição e só em 1991 terminou a proibição dos partidos políticos.
Com o novo regime, as primeiras eleições tiveram lugar em 1994. Nino Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, foi eleito Presidente da República à 2ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994.

Quatro anos depois, ainda conseguiu suster um golpe que visava a sua destituição. Mas não por muito tempo. A propósito de um nunca esclarecido fornecimento de armas para a guerrilha de Casemance, em Junho de 1998 travou-se uma violenta guerra civil entre partidários de Ansumane Mané e forças fieis a Nino. Mané destituiu-o em 7 de Maio de 1999, e Nino Vieira foi obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal.

Em 7 de Abril de 2005, regressou a Bissau anunciando a sua candidatura às presidenciais de Junho de 2005.
Depois de várias controvérsias, a sua candidatura foi aceite. Concorreu contra o seu antigo Partido, o PAIGC, que apresentou Malan Sanhá como candidato. Depois de ter ficado atrás de Malan na 1ª volta, Nino ganhou à 2ª, principalmente devido a apoios de outros candidatos, nomeadamente de Kumba Yalá.

Fonte: Universidade de Coimbra > Centro de Documentação 25 de Abril
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Nota dos editores:

(1) Vd. posts anteriores:

Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

Guiné 63/74 - P2143: PAIGC - Quem foi quem (2): Abílio Duarte (1931-1996)